Apesar da comprovada superioridade dos sistemas distritais, custo de implantação obscurece a visão do ciclo de vida útil

Dá-se o nome de energia distrital a instalações que atendem uma determinada área. Tais distritos podem ser térmicos e, também, híbridos, mesclando a distribuição, e não raro a geração, de energias elétrica e térmica. É inegável que a geração distribuída, uma variante de distrito energético, ao reduzir perdas na transmissão, é mais vantajosa sob diversos pontos de vista. Entretanto, é preciso ir mais a fundo no aproveitamento dos recursos envolvidos.

Os sistemas de energia distrital podem constituir-se de instalações que, tomando a energia produzida em outros pontos, como as hidrelétricas, por exemplo, transformam-na em energia térmica para resfriamento ou aquecimento e posterior distribuição em um espaço determinado. Podem, também, receber insumos como o gás natural, óleo combustível, biomassa, fotovoltaica ou eólica, produzindo em seguida energia elétrica e energia térmica num processo de co-geração. Sem entrar no mérito da sustentabilidade das fontes, esta é uma forma mais racional de aproveitamento dos insumos.

Muito comum em países europeus, asiáticos e nos Estados Unidos, os chamados sistemas distritais, debalde suas vantagens, encontram pouca receptividade no Brasil. Todavia podemos encontrar alguns exemplos de instalações, como é o caso do Centro Empresarial de São Paulo, CENESP, do final de década de 1970; o district cooling da Light, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, do final do século passado; o complexo administrativo de Suape, em Pernambuco, recentemente inaugurado; entre outros. No entanto, a característica básica é o atendimento de empreendimentos bem definidos, raramente regiões urbanas com multiusuários.

Fugindo à característica apontada, encontra-se em processo de implantação uma instalação de preparação e distribuição de água gelada para atender o complexo Porto-Novo Recife, com acionamento elétrico e dotada de processo de termoacumulação. “Esse projeto contempla o atendimento de vários empreendimentos localizados no bairro do Recife Antigo e no bairro de São José, os quais margeiam o Cais do Porto  do Recife. Os bairros são separados por um rio e conectados por uma ponte de extensão aproximada 170 metros”, explica Francisco Dantas, diretor da Interplan Planejamento Térmico Integrado, que assina o projeto.

Custo de implantação x ciclo de vida

Apesar das vantagens, a decisão por sistemas distritais, térmicos ou de energia, esbarra no mesmo obstáculo das demais soluções de longo prazo: a miopia que impede olhar além do custo de implantação, já que a visão arguta aponta para o menor custo no ciclo de vida útil.

“As soluções para atendimento coletivo são muito mais lógicas do que as soluções de atendimentos individualizados. Espelhe-se no trânsito nas grandes cidades, como exemplo.

Os sistemas distritais devem contemplar o fornecimento de energia em suas várias formas como um objetivo fim, um negócio dentro de outros negócios. Um shopping de grande porte, com instalação de potência da ordem de 6000 TR e atendendo cerca de 500 consumidores, é um exemplo de sistema distrital, embora restrito a uma área geográfica de pequena extensão. Imagine 500 consumidores confinados numa área restrita, despejando no entorno do empreendimento os rejeitos térmicos do processo individualizado de climatização. Seria beneficiar o ambiente interior sem preocupações com prejuízos causados ao exterior e ao bem-estar das pessoas que circulam no seu entorno”, argumenta Dantas.

José Carlos Felamingo, diretor da Union Rhac e veterano defensor de soluções energeticamente racionais, vai pelo mesmo caminho: “Os sistemas de distribuição compartilhados para energia térmica (água gelada, vapor etc.) são mais complexos quanto a distribuição, pois se considerarmos consumidores numa mesma rua, os tubos deveriam correr pelo subsolo, o que acarretariam licenças especiais etc. Isso, provavelmente, é o que espanta os possíveis interessados. Porém, quando falamos de EE (eficiência energética) a coisa muda, pois existem portarias específicas do Governo Federal (482/12 e 687/15 – geração distribuída) que permitem o compartilhamento entre unidades consumidoras, através do chamado ‘sistema de compensação de energia elétrica’ (Net Metering) através de usinas classificadas de microgeradores (≤75KW) ou minigeradores (>75kW até 5MW), desde que utilizem fontes de energia renováveis ou cogeração qualificada. Então, se a cogeração é uma dessas fontes produtoras de energia, pode-se pensar em cogerar num determinado site atendendo a demanda máxima de energia térmica da planta (ar condicionado, por exemplo), sendo que o excedente gerado de EE poderá ser compensado por outros consumidores, através do ‘sistema de compensação de energia elétrica’, em sites distintos, mesmo em outras localidades e distantes da fonte cogeradora, respeitando a legislação vigente”.

“Acredito ser uma questão cultural de operação; cada empreendimento quer ter uma suposta ‘autonomia’, mas com as diversas experiências bem-sucedidas pelo mundo, com o conceito de centralização da geração e consumo distribuído, este conceito haverá de evoluir em nosso mercado”, acredita Thomas Spitzl, da Oventrop.

Gás natural e cogeração

Felamingo esclarece que, na sua concepção, “o conceito de sistemas distritais de energia serve para todo e qualquer compartilhamento de energia, seja gás natural, EE, água gelada, vapor etc., e, a meu ver, deve ser melhor difundido e, assim, quem sabe, seja mais implementado”.

De qualquer maneira, não raro se associa os sistemas distritais à cogeração a gás natural. “Isso ocorre pelo fato de que a viabilidade econômica das térmicas a gás depende do aproveitamento dos resíduos térmicos da combustão, que representam cerca de 2/3 da energia contida no combustível. O ar condicionado obtido por tecnologias termicamente ativadas reduz os impactos ambientais e maximiza a eficiência energética, preservando a energia elétrica resultante do processo de geração para uso prioritariamente em cargas que exijam o seu nível de qualidade. Isso corresponde a majorar a eficiência do processo de produção a partir da racionalização do consumo. Essa é a visão do lado do fornecedor do recurso energético, no caso, o gás natural. O conceito deve ser ampliado sim, procurando soluções globais que enfoquem a eficiência energética na produção, no transporte e no consumo”, complementa Dantas, da Interplan.

Na opinião de Alberto Hernandez Neto, professor do curso de engenharia mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, a Poli-USP, o “uso de gás natural se dá em função de ser uma alternativa que torna menor o tempo de retorno do investimento (5 a 7 anos). Do ponto de vista técnico, pode se utilizar outras fontes de energia como energia elétrica, mas o tempo de retorno fica muito alto, em torno de 10 anos”.

O catedrático da Poli complementa dizendo que os “sistemas distritais podem variar em relação às fontes de energia utilizadas (eletricidade, gás, vapor, solar etc.) bem como na configuração dos componentes utilizados que, essencialmente, operam com resfriadores elétricos ou somente com resfriadores por absorção. Existem configurações que podem utilizar diferentes tipos de resfriadores, bem como lançar mão de estratégias com  a termoacumulação. A definição destas configurações é pautada pelo perfil de demanda de energia para resfriamento e para a demanda elétrica da região atendida pelo sistema de resfriamento distrital”.

Dantas explica que existem “as opções de sistema distrital de energia DHC (District Heating and Cooling) ou DE (District Energy) e sistema distrital de resfriamento DC (District Cooling). No primeiro caso distribui-se energia térmica (resfriamento e aquecimento) para climatização e para processos industriais, ou suprimento de água quente sanitária predial, a depender da existência de dupla demanda. No caso dos sistemas distritais unicamente para resfriamento (DC), esses se constituiriam de uma central de água gelada de grande porte, estações de bombeamento e rede hidráulica de suprimento aos consumidores”.

João Paulo Piovesan, gerente de vendas para a América Latina da Danfoss, entende que, “como concepção deve-se ver primeiramente se o sistema é financeiramente viável ao analisar o tamanho e a ocupação dos empreendimentos, isto é, se o sistema será utilizado em sua máxima capacidade. As condições climáticas também são primordiais para o direcionamento do sistema distrital. Por fim, deve-se ter em mente a fonte de energia que será utilizada como, por exemplo, se o calor residual de alguma fonte poderia ser utilizado para aumentar a viabilidade”.

O gerente da Danfoss acredita na possibilidade de ampliação dos sistemas distritais de energia, em longo prazo, “por questões de reaproveitamento energético, redução de custos e, consequentemente, devido a economia de escalas, ou seja, quanto mais sistemas distritais forem sendo utilizados, mais em conta ficará o projeto”.

Perspectivas para os sistemas distritais

Hernandez Neto, da Poli, é relativamente cético em relação à proliferação dos sistemas distritais no país. “No momento não vejo como esta alternativa se amplie, porém, acredito ser uma alternativa viável nos próximos anos por permitir atender demandas de geração de energia e de resfriamento de forma local (denominada geração distribuída) que é uma alternativa adotada em centros urbanos do porte de São Paulo ou mesmo de porte menor”.

Para Dantas, por outro lado, “o processo de geração distribuída é o exemplo clássico da existência do mercado, o qual poderá consistir de um sistema de cogeração, suprindo os consumidores com energia elétrica e energia térmica, esta última obtida do aproveitamento dos resíduos térmicos da combustão. Com isso, obtém-se uma eficiência energética de até 90%, contra possíveis 40% do sistema de geração exclusiva de eletricidade em estágio único, maximizando o aproveitamento do combustível e minimizando o impacto ambiental. Isso em substituição às térmicas de baixa eficiência e altos níveis de emissão, admissíveis apenas para operação circunstancial, e não sistemática”.

Plano mestre do District Cooling no projeto Porto Novo Recife

 

Talvez contribua para isso uma política tarifária mais amigável para o gás natural. “O preço do GN está bem reduzido e bastante competitivo, tanto para geração de EE como para geração de água gelada; uma vez que a cogeração se enquadrada como usina geradora de energia, dentro do conceito de ‘sistema de compensação de energia elétrica’, o cenário para a implantação de sistemas distritais se tornou favorável, permitindo o compartilhamento tanto de energia térmica como EE”. Hernandez Neto complementa informando que estudos realizados no seu grupo de pesquisa confirmam que a relação das tarifas de energia elétrica e de gás natural afetam significativamente a viabilidade do sistema de resfriamento distrital.

Opinião semelhante é compartilhada por Spitzl. “As centrais distritais normalmente já são mais eficientes, e com tarifas favoráveis isto tende a impulsionar a solução. Sistemas de resfriamento distrital (SRD) são soluções muito eficientes em termos energéticos, pois aproveitam ao máximo a economia de escala, a diversidade de demanda de resfriamento para diferentes edificações, e o alto padrão de operação e manutenção da planta. Embora a economia de energia proveniente deste tipo de sistema varie de acordo com a configuração do SRD, tais como o comprimento das tubagens de distribuição, o método de rejeição de calor e outros esquemas de melhoria da eficiência da planta, uma economia típica que podemos projetar é de cerca de 20% a 30%”.

Arriscando uma visão mais estratégica, o diretor da Interplan entende que “as tarifas são fatores conjunturais que podem incentivar a utilização. Numa visão de longo prazo os fatores que conduzem à sustentabilidade são os estruturais. A escolha deve ser feita por avaliação dos processos físicos (transmissão de calor, psicrometria, termodinâmica e mecânica dos fluidos), priorizando a preservação dos ecossistemas, sem o que não serão sustentáveis e duradouros. Deve-se considerar a tendência mundial para construções de edificações Net-Zero, o que impõe a obtenção de energia a partir de fontes renováveis: solar, eólica, de biomassa e geotérmica”, enfatiza.

Além da economia imediata, é importante ressaltar as vantagens, já observadas em comentários neste mesmo texto, dos sistemas distritais frente aos sistemas individuais. “Maior eficiência térmica, menor índice de emissões, redução de custos de operação e manutenção, racionalização do uso em razão da diversificação dos perfis de consumo entre usuários, o que enseja a redução da carga de bloco se comparada ao somatório das cargas individualizadas por consumidor”, são os argumentos esgrimidos pelo consultor Dantas.

O consultor da Interplan apoia seus argumentos nos estudos de 2008 da IDEA (The International District Energy Association), que apontam os sistemas distritais de resfriamento predial eletricamente acionados e dotados de termoacumulação, como agentes do acréscimo de eficiência energética da ordem de 140%, quando comparados a vários sistemas independentes por edifício. “Além do mais a opção por uma instalação distrital situada em edificação específica valoriza os edifícios atendidos por evitar ocupação de espaço para objetivo-meio, eliminando inconvenientes como vibrações, ruídos, rejeitos térmicos etc. no entorno dos edifícios ocupados para o objetivo-fim”.

Felamingo chama a atenção para o fato de que “os sistemas de climatização, quando utilizam água gelada, têm na termoacumulação um elemento de flexibilização operacional das centrais de água gelada, reduzindo o custo de energia no horário de ponta. A termoacumulação pode, também, ser utilizada nos sistemas distritais de energia, sejam eles só de produção de água gelada ou de cogeração”.

Racionalização do dimensionamento do sistema de produção, reduzindo a potência ao cortar picos de carga, podendo constituir-se em chiller virtual, o que resulta em redução de potências de instalações prediais tais como subestações, geradores e intensidade do uso da estrutura da distribuidora de energia elétrica, são outros fatores apontados por Dantas para o uso de termoacumulação em sistemas distritais.

Piovesan, da Danfoss, relata que nas regiões mais frias da Europa os sistemas distritais são bastante utilizados para aquecimento. “Na Rússia, por exemplo, é largamente utilizado e geralmente é construído e gerido pelo governo. Neste caso se utiliza o calor residual de usinas termelétricas para produzir água quente ou água gelada, que é vendida às residências e aos prédios comerciais do distrito. Assim, há um melhor aproveitamento da energia produzida, mais racional e usando fontes de descarte de calor para a produção da água gelada ou quente”.

O gerente da Danfoss diz, ainda, que “o balanceamento e o controle em sistemas distritais contribuem para que o projeto seja atendido conforme especificado. Garante, desse modo, a distribuição correta da água quente/gelada para cada uma das unidades consumidoras. O balanceamento e o controle garantem o envio da quantidade específica requerida por cada unidade consumidora, sem desperdício”. Da mesma maneira que no sistema convencional, segundo Piovesan, é imprescindível que as variações de pressão do sistema não afetem o balanceamento e nem o controle de temperatura do ambiente, ou seja, que não tenha excesso nem falta de vazão nas unidades consumidoras.

“No conceito de centralização da geração, a distribuição da energia é fundamental, e, nesta distribuição, além do sistema de bombeamento, está  o balanceamento de distribuição da água gelada no(s) sistema(s), pois cada consumidor/cliente terá que receber a quantidade necessária, nem mais e nem menos, para atender a seus requisitos. Desta forma um mau dimensionamento ou a ausência do sistema de balanceamento acarretará numa operação com baixa eficiência energética, e não atenderá aos requisitos dos usuários, acarretando certamente em desconforto e perda de qualidade do ar”, complementa Spitzl.

Defendendo a viabilidade dos sistemas distritais, Dantas argumenta que o projeto do complexo Porto-Novo Recife, parcialmente implementado, atenderá vários empreendimentos localizados nos bairros do Recife Antigo e São José, separados por um rio e conectados por uma ponte com cerca de 170 metros de extensão. Uma rede hidráulica secundária se estende desde o local da central distrital, situada no bairro de São José, conecta-se à estrutura da ponte que une os 2 bairros e se estende ainda por cerca de 1200 metros pelo bairro do Recife Antigo, beirando o Cais do Porto.

“No total são cerca de 3500 metros de rede (alimentação e retorno), uma central de água gelada com potência final prevista de 3200 TR e sistema de termoacumulação com capacidade de armazenamento de 12.000 TR/h. Atualmente está operando o 1º módulo da central de água gelada com 1/3 da potência prevista. O projeto Porto-Novo Recife transforma os antigos armazéns do porto em polo de negócios, lazer, entretenimento, turismo e hotelaria”, conclui Dantas.

Ronaldo Almeida – ronaldo@nteditorial.com.br

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