A compreensão equivocada sobre o processo nem sempre ocorre apenas no lado do contratante, observa-se no mercado a venda ou execução de serviços inadequados
Muitas publicações e eventos têm abordado com frequência o temaIndústria 4.0, assim como a 4ª Geração da Manutenção, destacando a importância no uso da tecnologia e na atenção quanto aos conceitos de confiabilidade. Especificadamente no que se refere a manutenção, é fato afirmar que entramos em uma nova era em que o uso de ferramentas informatizadas de gestão, de interfaces e integrações entre sistemas, e o uso do IoT e da Inteligência Artificial inundam o mercado com interessantes opções e recursos que possibilitam uma gestão mais eficaz.
No entanto, uma atenção especial deve ser dada ao conceito de manutenção para esta 4ª geração, uma vez que o objetivo a ser atingido envolve o cumprimento da função do ativo durante toda a sua vida útil projetada. Adicionalmente, o conceito também estabelece que o foco do planejamento e das atividades de manutenção não mais deverá se ater somente ao ativo ou equipamento, mas, também, e principalmente, ao sistema ao qual o ativo está inserido, pois o seu desempenho (do ativo) poderá depender de outros componentes na instalação.
Vejam, por exemplo, a diferença entre focar a manutenção em resfriadores de líquido (chillers) e ampliar este foco ao sistema de água gelada como um todo, no qual também se estenderá a preocupação com a contribuição de outros componentes como bombas de água gelada, controles e automação, e até mesmo quanto a qualidade da água circulante no sistema, para que se obtenha o desempenho esperado para o chiller e sua central de água gelada na edificação. (Figura 1)
De forma análoga, vejam a importância de se estender o foco aos ventiladores, distribuição de ar, sistemas de monitoramento da pressão diferencial e controles, e até mesmo quanto a estanqueidade em caixas de escadas de emergência, para que se assegure a adequada e esperada performance de um sistema de pressurização de escadas de emergência em uma edificação ocupada. Neste sentido, tanto a preservação da função do ativo, quanto o olhar sistêmico em uma instalação, são condições importantes para assegurar o sucesso em uma atividade de manutenção.

Figura 1
O fato é que somente a adoção do olhar sistêmico em um planejamento da manutenção tenderá a assegurar o cumprimento da função de ativos e sistemas nos quais estão inseridos. No entanto, segundo este mesmo conceito, torna-se importante aferir periodicamente tal desempenho através de processos que envolvam não somente a coleta de dados e métricas em campo, como a condução de recomissionamentos ou retrocomissionamentos de forma abrangente e integrada, por parte dos responsáveis locais da operação e manutenção.
Apesar disto, observa-se a baixa adesão desta prática em um universo de edificações comerciais, seja por desconhecimento de sua importância, seja pelo custo adicional a ser previsto no orçamento da manutenção. Como resultado, tem-se a condução de procedimentos de operação e manutenção sobre equipamentos, sistemas e instalações, sem que se consiga afirmar o seu comportamento em relação a curva de desempenho e sem promover ajustes eventualmente necessários para a correção de efeitos muitas vezes percebidos pela população ocupante na edificação.
O uso periódico do comissionamento como ferramenta de qualidade na operação de uma edificação é necessário, justificando a sua inclusão em planos de manutenção, assim como já se considera atividades como a verificação do alinhamento em conjuntos moto-bomba após determinados tipos de manutenção ou após a análise de resultados de uma manutenção preditiva.
O processo de comissionamento
O processo de comissionamento contínuo deve ser amplo e dar continuidade às atividades de comissionamento durante o período de obras ou mesmo realizar um retrocomissionamento em instalações e sistemas na fase de uso, visando resgatar as condições operacionais e a performance especificadas no projeto.
Estas atividades devem ser planejadas e todas as informações de projeto e instalação devem ser levantadas e organizadas com o objetivo degerar todos os procedimentos adequados de manutenção e operação. É necessário gerar um documento denominadoCFR (CurrentFacilitiesRequirements) que englobará a compilação de todas as condições operacionais previstas no projeto e todos os ajustes realizados na partida dos equipamentos. Este CFR fará parte de um conjunto maior de informações que será chamado de Manual de Sistemas, que por sua vez será composto por todos os projetos atualizados e antigos para que não se percam informações importantes de mudanças introduzidas em relação ao projeto original, assim como as razões para estas mudanças, todas as garantias de equipamentos, todas as manutenções corretivas e seus históricos, manuais de instalação e operação de equipamentos e componentes, sequência de operações de todas as lógicas de controle e seus set points, todos os treinamentos realizadose demais informações relevantes que possam adicionar conhecimentoa respeito dos sistemas.Trata-se, portanto, de uma tarefa muito complexa, ainda mais quando este trabalho envolve instalações mais antigas, quando a maior parte destas informações foram perdidas ou encontram-se defasadas em relação a operação atual.
A geração ou organização desta documentação é o ponto de partida para um ajuste geral do sistema e decisão sobre possíveis alterações que possibilitem uma operação mais eficiente do ponto de vista energético e de conforto ou processo, dependendo de sua finalidade (Figura 2).

Fonte: Ashrae Commissioning Guideline
É muito comum encontrar sistemas ou instalações operando totalmente fora das condições ou parâmetros para os quais foram projetados, o que incorrerá na perda de sua funcionalidade e performance técnica e energética (usam muito mais energia do que deveriam). Neste sentido, torna-se importante ressaltar que o resgate desua condição operacional traz inúmeros benefícios ao usuário, seja do ponto de vista de eficiênciaenergética, seja no que se refere a promover as condições de conforto para os usuários.
Na prática, a maioria das instalações opera fora do seu ponto de melhor ajustee, portanto, oferecendo um enorme potencial para a implantação de processos de comissionamento que otimizariam suas condições de operação e manutenção.
Muitas vezes o projeto original apresenta falhas conceituais, o que impedirá com que se atinja o resultado originalmente projetado e esperado, mesmo que o modo ou modelo de operação inicial seja reinserido em seu sistema de automação. Caso isto venha a ocorrer, o ideal será implementar um plano de atualização da instalação buscando o atendimento das necessidades iniciais.
No entanto, apesar dos benefícios oferecidos pelo processo de comissionamento na fase de uso e operação de edifícios e suas instalações, nota-se uma busca muito aquém do necessário para a contratação desta solução e importante ferramenta para auxílio ao profissional responsável pela manutenção.
Destacam-se como principais ofensores neste sentido:
O desconhecimento parcial ou total do processo de comissionamento e retrocomissionamento, resultando na impossibilidade de:
Identificá-lo como uma ferramenta necessária para garantir ou assegurar o desempenho esperado para o ativo, instalação e sistema;
Detalhá-lo como escopo e contratá-lo junto ao mercado, razão pela qual ainda se observam erros na contratação de “comissionamentos para o recebimento de obras”, ou mesmo a contratação de atividades parciais que o integram, como por exemplo o TAB (Teste, Ajuste e Balanceamento), imaginando se tratar de um processo de comissionamento;
Experiências anteriores e ineficazes quanto a serviços que foram vendidos como comissionamento, embora não atendessem aos fundamentos do processo e não utilizassem protocolos adequados;
Custos necessários para a contratação deste serviço e para a eventual adequação da operação;
Possibilidade de trazer à tona erros operacionais.
Por fim, cabe-nos acrescentar que tal compreensão equivocada sobre o processo nem sempre ocorre apenas no lado do contratante, uma vez que ainda se observa no mercado de AVAC-R a venda ou execução de serviços inadequados ou incompletos, por parte de empresas do setor.
- Alexandre M. F. Lara, diretor técnico na A&F Partners Consulting
- Marcos A. Vargas Pereira diretor da Térmica Brasil