A implementação da Emenda, além de deter a marcha da crise climática, poderá redundar em novos capitais e modernização da indústria

A Emenda de Kigali é um adendo ao Protocolo de Montreal que, em sua concepção, tinha como propósito o combate à destruição da camada de ozônio, essencial para a proteção da vida na terra por filtrar a radiação ultravioleta. Dentre os principais agentes destruidores da camada de ozônio estão os clorofluorcarbonos, os CFCs. Em substituição a essas substâncias, a indústria apostou nos hidrofluorcarbonetos (HFCs). No entanto, muito cedo percebeu-se que as novas substâncias traziam um problema igual ou maior. Os HFCs possuem alto potencial de aquecimento global (GWP, na sigla em inglês).

Assim, a Emenda de Kigali, ratificada pelo Congresso brasileiro e pela Presidência da República no apagar das luzes do último governo, nasceu para corrigir o problema. Antes de mais nada, é preciso perceber que a sua implementação, envolvendo pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e formação intensiva de mão de obra, liberará significativos aportes financeiros ao mercado brasileiro de refrigeração e ar-condicionado.

Por outro lado, mesmo antes da ratificação da Emenda, o mercado brasileiro vinha sofrendo impacto, acompanhando o que acontece no mundo, como explica Rogério Marson Rodrigues, gestão industrial da Eletrofrio: “Há muitos anos que parte do mercado mundial de refrigeração e ar-condicionado já vem se preparando para atender as demandas da Emenda de Kigali. Mesmo antes de sua ratificação, muitos países já tinham regras claras que orientaram o desenvolvimento de novas tecnologias, hoje difundidas por quase todo o mundo, o que trouxe a necessidade de muita pesquisa, ensaios e cases que mostraram a viabilidade de alternativas de baixíssimo GWP com eficiência energética, que era um dos grandes desafios de engenharia do projeto. Com as tecnologias desenvolvidas, iniciou-se o período de capacitação profissional, que envolveu centenas de milhares de pessoas interessadas em se preparar para as mudanças que estavam por vir.”

Tecnologia, nesse caso, referem-se aos fluidos alternativos. “Os substitutos dos HCFCs e HFCs disponíveis hoje no mercado são os fluidos HFOs e os naturais, como o CO2, o propano, a amônia, entre outros. Os que estão se mostrando mais viáveis até este momento são os fluidos naturais, não pela simplicidade de sua aplicação, mas principalmente pela longevidade do projeto, disponibilidade no mercado nacional, baixo custo de aquisição e por atender toda demanda dos protocolos de proteção do meio ambiente”, diz Roberto Ribeiro, supervisor de engenharia da Mayekawa do Brasil.

“Analisando o desempenho dos fluidos que estão sendo utilizados para atender a essa emenda, como R32, cujas característica e desempenho são superiores aos HFCS, tendo uma maior eficiência aliada a baixa inflamabilidade e baixo GWP, há um impacto positivo tanto no funcionamento das instalações quanto no consumo energético reduzido.

“O crescimento do setor, aliado às características dos novos fluidos refrigerantes, trazem uma melhor perspectiva ambiental e um impacto positivo na melhora do aquecimento global. No mercado mundial esse fluido já é amplamente utilizado e a adequação de equipamentos de diversas marcas deve facilitar essa implementação e troca de equipamentos antigos, contribuindo na melhora na eficiência energética que é um meio para afastar crises no setor de energia”, defende Kedma Farsura, engenheira da Danfoss.

Tendências e gargalos

A introdução de novos fluidos traz consigo a necessidade de uma adequação dos equipamentos e, também, alguns problemas. “As novas tecnologias que atendem as demandas da Emenda de Kigali trouxeram grandes mudanças no mercado, gerando a necessidade de novos materiais e componentes, cada qual adequado aos fluidos refrigerantes especificados nestes projetos de baixo impacto ambiental. Os custos de aquisição de equipamentos de refrigeração subiram, o que gerou a necessidade de reorientação dos planos de investimento nos setores consumidores destes produtos”, pontua Marson.

Exemplos de tecnologias e estratégias de adequação aos novos fluidos são relacionadas por Farsura.

Para equipamentos de ar-condicionado de expansão direta: Aplicação de controles e recursos que garantem um melhor rendimento do sistema e economia de energia, como inversores de frequência, controladores, válvulas de expansão eletrônicas e fluidos sustentáveis.

Centrais de água gelada: Além da aplicação de inversores de frequência em motores de bombas de água gelada, água de condensação e torres de resfriamento, a aplicação de válvulas motorizadas que garantem o controle e economia de energia em cargas parciais, ocorridas em uma grande parte do tempo do sistema.

Refrigeração industrial: Sistemas automáticos de purga que garantem o bom funcionamento dos sistemas, evitando trabalhos manuais que podem ser perigosos e prejudiciais a operadores, com a aplicação de válvulas motorizadas e controladores para garantir o funcionamento otimizado da instalação.

Refrigeração comercial: Controladores, válvulas e inversores que permitam a variação da velocidade e aproveitem cargas parciais noturnas para um funcionamento que gere economia de energia sem perder a qualidade da refrigeração do sistema e dos produtos conservados nela.

Parece simples, mas nem tanto. O mercado ainda esbarra na dificuldade de capacitar a força de trabalho e a pouca disponibilidade de capital para a aquisição de novas tecnologias. “A indústria nacional vem se preparando para a aplicação das novas tecnologias há vários anos. Já são dezenas de sistemas de refrigeração que atendem a 100% das demandas da Emenda de Kigali em operação no Brasil, porém, os custos de aquisição e a necessidade por capacitação profissional têm impedido sua disseminação de forma ampla, motivo pelo qual esses assuntos ainda são um tabu para a grande maioria dos consumidores de frio no país”, explica Marson.

Conhecedora do “chão de fábrica”, Kedma Farsura reforça o argumento. “A necessidade de capacitação constante da mão de obra qualificada que atua nesses sistemas é o primeiro impacto imediato. Com as constantes inovações e os novos fluidos, é necessário capacitação por parte dos fabricantes e surgem novas formas de trabalho. Fluidos inflamáveis são utilizados em pequenos sistemas de refrigeração e é importante saber as boas práticas para se lidar com eles, o que devemos evitar e quais as melhores formas de efetuar carga no sistema. O mercado terá um equipamento de maior tecnologia, que demanda um investimento inicial maior, tanto nele como em sua instalação, mas que apresentará um melhor desempenho logo após o startup com o início da recuperação de parte do investimento em economia de energia.”

O peso da matriz

Rogério Marson Rodrigues, do alto da sua experiência de décadas com o mercado de refrigeração, vai além: “O mercado da refrigeração comercial é um bom sinalizador da influência da Emenda de Kigali nas tomadas de decisão para novos projetos de supermercados. Algumas redes internacionais de varejo, com compromissos ambientais, passam a exigir que suas filiais mundo afora iniciem o processo de adequação, e isso repercute no Brasil, onde dezenas de lojas já apresentam projetos de elevada eficiência energética e isentos de fluidos refrigerantes enquadrados pela Emenda de Kigali.”

Marson explica que em países onde a legislação é mais rigorosa, as mudanças tecnológicas para atendimento à Emenda de Kigali foram rápidas, e a resposta do mercado consumidor destas novas tecnologias rapidamente absorveu as consequências, como elevação do custo de aquisição e a necessidade de capacitação profissional do seu time de operação e manutenção. “No Brasil o ritmo é muito lento, função da demora da ratificação da Emenda de Kigali e do cronograma bastante complacente de redução das cotas de importação e disponibilização do produto no mercado”, lamenta.

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